quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Ana Z. e a fantástica descoberta da adolescência, por Claudia Eiffel

Estudar Ana Z. aonde vai você?, obra de Marina Colasanti, não é uma tarefa fácil se ao lermos a obra não voltarmos no tempo, através de nossas memórias, e visitarmos os sentimentos infantis e de transição entre infância e adolescência, pois a obra trata do rito de passagem entre essas duas fases. Então, se fizermos uma leitura linear e usarmos nossa percepção adulta somente, corremos o risco de deixar de perceber detalhes muito importantes que fazem da obra um referencial.
Para ler as obras dessa autora é indispensável o conhecimento prévio de simbolismos, já que as obras são ricas em elementos simbólicos significativos que exigem tal conhecimento.
Falando na autora, vamos às apresentações: Marina Colasanti, nasceu em 1937, em Asmara, na África, mas morou 11 anos na Itália, logo após veio para o Brasil, onde vive até agora. Trabalhou em jornalismo durante 29 anos e em publicidade durante 6 anos. A literatura, na vida de Marina, aconteceu concomitantemente. Ela brinca, dizendo em uma entrevista, que esses empregos foram seu ‘mestrado e doutorado no manuseio do texto’. Seu primeiro livro foi publicado em 1968 (Eu sozinha), e já conta com mais de 30 títulos (entre contos, crônicas, ensaios, poesia e livros infantis).
A obra que analisaremos foi publicada originalmente em 1993, pela Editora Ática, e em 1994 rendeu à autora o Prêmio Jabuti Infantil ou Juvenil.
A obra inicia com Ana Z., uma curiosa e corajosa menina, debruçada à beira de um poço para ver se existia água lá, acidentalmente ela deixa cair seu estimado colar de contas brancas. Ana então decide ir buscá-lo descendo as escadas, até o fundo do poço. Chegando lá encontra uma velha senhora tricotando um fio de água para os peixes que moravam lá, mas pela falta de água, tinham ido embora à procura de água. Ela encontra as contas brancas do colar, exceto uma: a maior e mais bonita, a senhora sugere que um dos peixes poderia ter engolido, diante disso Ana sai em busca da conta. A seguir ela encontra um mineiro que extraía ouro para fazer as escamas douradas dos peixes. Mais adiante, após encontrar dois consertadores de tumbas egípcias, ela encontra uma porta que dá para o deserto. Sua busca é sempre tentando encontrar os peixes para a fim de encontrar a conta do colar que falta. O próximo encontro é com um pastor e três cabras, com esse ela não consegue estabelecer diálogo. Numa das viagens pelo deserto, encontra um sultão e vai morar numa torre, onde ela conta histórias que ela mesma inventa. É importante esclarecer que essas histórias dela são uma mistura de elementos de várias histórias clássicas infantis. Pessoas e situações estranhas fazem o leitor viajar junto com ela numa caravana liderada por um cameleiro azul e uma cidade fantástica no meio do deserto, onde só tem areia, porém em frente a todas as casas tem barcos. Toda essa aventura é vivida em meio a um período de transição entre a infância e adolescência. Ana retorna de onde partiu e aí podemos ver que o tempo passou e ela cresceu, devido à dificuldade que ela tem de passar pelo buraco no chão da sala da tumba.
É bem possível que ao ler, já no início da leitura da obra, façamos associações à outra obra muito conhecida da literatura infantil: Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, isso se dá pelo gênero literário em que ambas estão inseridas: o fantástico. Resumidamente poderíamos conceituá-lo como aquele que brinca com as pontes entre o real e o irreal, mas para não sermos tão simplistas, optamos pelo conceito de Jacqueline Held, que diz assim:
(...) pertencerá à literatura fantástica toda a obra na qual temática, situação, atmosfera, mesmo linguagem, ou tudo isso junto, nos introduzirão num outro mundo que não ou da percepção comum, diferente, estrangeiro, estranho, que nos permite voltar, pouco a pouco, ao longo da reflexão, a esses diferentes componentes. (HELD, 1980, p.30).

A semelhança entre as obras vai além do gênero, as duas obras têm como personagem principal uma menina e ambas iniciam a história partindo para um mundo diferente e encontrando situações ou pessoas incomuns ao mundo real, a autora Marina Colassanti discorda dessa semelhança e nos convida a examinarmos mais a fundo as obras, segundo ela:

(...)há diferenças fundamentais de conceito e momento social. Alice cai na toca. Ana não cai, ela escolhe descer, ir ao fundo. Alice é levada pelos acontecimentos. Ana realiza uma busca voluntária, vai atrás do seu desejo. Alice acorda, tudo foi um sonho. Ana não precisa acordar, porque não sonhou. Ana renasce ao término da viagem, passa, como em um parto simbólico, da infância à adolescência. Ana cresceu na viagem: (COLASSANTI, 2003).

É importante salientar que é comum nosso cérebro fazer associações com o que já conhecemos. Como afirma Dias:

O primordial de uma leitura é ser significativa para quem lê, por conseguinte este irá associar a outros textos já lidos, estabelecendo assim a intertextualidade. Uma relação de diálogo é instaurada, aberta e livre, pois no tocante à leitura do textos simbólicos solicitará do leitor uma inferência, uma participação ativa na construção dos significados (DIAS, 2001, p.24)

A autora discorda quanto às semelhanças, mas admite ter sido influenciada pelas muitas leituras que foram feitas na infância, e ela atribui grande importância ao processo criativo que toma corpo através de textos bem trabalhados e que priorizam certas esferas do pensamento: “Estou atrás de outras coisas, da emoção, do trânsito livre num universo que os outros chamam de fantástico, das pontes que desse universo se estendem para o inconsciente” (COLASSANTI, 2002).
Atenta às questões feministas, Marina Colasanti afirma que o feminismo e o papel da mulher na sociedade são temas constantes nas suas obras. E a obra Ana Z. aonde vai você?, chega ser apontada pela Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, como forma de auxílio no desenvolvimento da educação das meninas em situações de risco devido à extrema pobreza e o contexto social em que estão inseridas. A obra funcionaria como uma espécie de viagem interior que, ao final, resultaria em mulheres donas do próprio destino, independentes, que fabricam sua própria liberdade. Percebemos que a obra pode auxiliar nesse processo de conscientização através da viagem da personagem, que pode simbolizar o processo de libertação, emancipação e auto-conhecimento da mulher. No entanto, é importante salientar que a obra tem a pretensão de atender a um público infanto-juvenil. E não exclusivamente a um gênero feminino.
A respeito da condição feminina, uma importante declaração da autora esclarece:
Recentemente, chegou em minhas mãos uma pesquisa francesa feita com crianças e pré-adolescentes onde se percebe claramente que os super-heróis, o jornal, os óculos, a pasta de trabalho e o carro continuam sendo símbolos masculinos, enquanto a figura da mulher ainda aparece ligada à maternidade e à função de dona de casa. E o incrível é que a maioria desses livros foi escrita por mulheres. Eu mesma tenho livros com essas características. Mas percebi isso a tempo de escrever algo como Ana Z, aonde vai você?, protagonizado por uma garota aventureira (COLASSANTI, 2002).

A literatura destinada ao público infantil é um acontecimento recente na história da humanidade, tendo surgido entre os séculos XVII e XVIII na Europa, num período em que a infância não se parecia em nada com a da modernidade. A idéia de proteção da criança era completamente diferente, as crianças na idade média, por exemplo, participavam de todos os eventos sociais (mortes, guerras, etc). Com a conquista do poder econômico pela burguesia, iniciou-se a organização da sociedade com noções de família e distribuições dos papeis familiares bem definidos. Para auxiliar as famílias na formação das crianças surge a escola que tem fundamental importância, e é nesse contexto que surge o livro infantil, como ferramenta de auxilio nessa tarefa. E é por causa deste comprometimento inicial da literatura, que até nossos dias sofremos as conseqüências de ter muita literatura infantil atendendo a fins pedagógicos, enquanto deveria divertir, ampliar horizontes. Segundo Salvatore D’Onofrio, na concepção horaciana:

(...) a arte não tem outra finalidade a não ser provocar o prazer estético. A literatura tem uma validade intrínseca e é autônoma em relação às outras atividades do saber humano e do viver social. Essa teoria, baseada no conceito de "arte pela arte", focaliza os elementos significantes e expressivos da obra literária. (D’ONOFRIO, 1995. p. 120)

No Brasil, o boom da literatura infantil se dá nas últimas três décadas, do século XX, período em que está inserida a obra que estamos analisando.
Vários elementos tornam essa narrativa interessante, um deles é, sem dúvida, o recurso literário usado pela autora na construção do narrador que alterna entre primeira e terceira pessoas dando à narrativa ora subjetividade, ora onisciência, causa no leitor um sentimento de cumplicidade com o narrador, causando uma impressão de afinidade e amizade entre os dois. A autora coloca-se no mesmo nível do leitor, o que faz com que se sinta convidado a participar da história.
Em um trecho, o narrador tenta adivinhar até mesmo os desejos da personagem:
Acompanhei Ana até aqui, entrei com ela na casa. Quando sentou-se no banco, temi que não houvesse banco nenhum e ela caísse no chão. Mas Ana deve ter desejado muito aquela casa, que a mulher também desejava, assim como a desejavam as andorinhas que abrigavam seus ninhos sob as telhas, e a roseira que lhe escalava a parede, tornando-a fresca e acolhedora. O fato é que Ana sentou-se. (...)
Tudo isso eu vi. Ainda esperei até mais tarde, até a hora de Ana ir deitar-se. Só quando tive certeza de que dormia, na cama estreita e limpa, deixei-a. E fui tratar da minha vida. (COLASSANTI, 1994, p. 32).


Observa-se que os símbolos estão presentes em toda a obra, apresentaremos alguns: Acreditamos que o poço seja uma espécie de túnel de passagem que Ana atravessa em busca de seus desejos. O fato dela descer ao fundo do poço para buscar as contas do colar, é interpretado de diversas formas pelos leitores; alguns acreditam que o início da adolescência é esse período em que descemos no fundo do poço dos nossos sentimentos, onde tudo é intenso, de forma que possamos construir nossa personalidade, alguns abandonando velhos conceitos impostos pela família, escola, religião, etc. e outros buscando novos. A escuridão que acompanha Ana nos primeiros capítulos do livro, traduzem bem esse sentimento de ansiedade e indefinições na busca de uma nova fase da vida. Grande parte da história se passa no deserto onde Ana procura os peixes, que, por sua vez, buscam água, a água simboliza a fonte de vida. O encontro com o pastor que não a compreende e por quem não é compreendida é a descrição dos conflitos que os adolescentes passam em relação ao diálogo. A última, e acreditamos mais significativa das imagens simbólicas da obra, é a passagem dela pelo buraco da sala que simboliza o parto, o nascimento dela para uma nova vida, a idade adulta. Um trecho relata de forma extraordinária a semelhança:

(...) a cabeça sai primeiro, que é o mais fácil. Mas os ombros entalam, são largos demais. Ana se espreme, se deita, tenta de toda maneira, enfia um braço pela abertura, para puxar-se com a mão já do lado de lá(...) Porém, aos poucos, como se a parede tivesse pena dela e cedesse passagem, Ana vai avançando rumo ao outro lado. Até que, livres os ombros e os braços, pode parar um instante para descansar, respirar com força e, numa última arrancada, passar pelo resto do corpo para dentro da mina (COLASSANTI, 1994, p. 78-79).

As muitas situações simbólicas vividas por Ana, que estão no livro, só têm sentido por estarem inseridas na viagem ao interior do poço, que pode ser traduzida como a viagem pelo interior de nós mesmos. Simbolizando a fase do amadurecimento da infância para a fase adulta.
É possível que cada leitor possa fazer uma interpretação diferente do texto, mas todos terminarão a leitura convencidos de que a viagem era necessária e inevitável para Ana e para cada um de nós.

REFERÊNCIAS
COLASSANTI, M. Ana Z. Aonde vai você?. 5. ed. São Paulo: Ática, 1994. (Série aberto)
D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: Prolegômenos e teoria narrativa. São Paulo: Ática, 1995.
________ disponível em: http://rbep.inep.gov.br/index.php/RBEP/article/viewFile/351/355. acesso em 30.11.2007
________ disponível em: http://www.record.com.br/entrevista.asp?entrevista=56 acesso em 30.11.2007

________ disponível em: http://www.ricardoazevedo.com.br/Artigo05.htm, acesso em 30.11.2007.

HELD, J. O imaginário do poder. As crianças e a literatura fantástica. São Paulo: Summus, 1980.

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