segunda-feira, 6 de outubro de 2008

A representação do negro no romance “O Cortiço”

A representação do negro no romance “O Cortiço”
“O que representam os personagens negros na obra de Aluísio Azevedo”
Por Karine Benites

A representação do negro na Literatura Brasileira é marcada pelo estereótipo e preconceito ao longo da época. Inexistente antes da abolição do tráfico de escravos, os negros passaram a ser representados pelos literários no final da fase indianista, época em que o espírito nacionalista era predominante. “O negro era de índole escrava, humilde e resignado, como aparece no romance de José de Alencar” (CASTILHO, 2004). Até mesmo os abolicionistas tinham dificuldade em verem positivamente os personagens negros, estereotipando-os, na fase naturalista, com exagerado tom imoral, descrevendo-os com feiúra e bestialidade, afirmando sua inferioridade tanto biológica como cultural. A mensagem que esses romances passavam é que “a companhia de negros não é saudável porque eles não controlam seus instintos animais, não tem moral e podem destruir a de quem tem, no caso, a moral dos brancos” (CASTILHO, 2004).
No livro “O Cortiço”, o escritor abolicionista Aluísio de Azevedo utilizou-se também dos estereótipos incumbidos à raça negra, o que podemos interpretar como uma crítica ou uma forma de demonstrar o nacionalismo. Sintonizado com o racismo científico em voga no século XIX chamado de Darwinismo_ teoria que afirma a existência de uma raça superior (a branca) e inferior (a escura) – o autor não escapou à observação racista de seus personagens, mostrando a preferência das mulheres negras em juntar-se aos brancos, no qual diziam ser uma “raça superior a sua”. Essa questão também é identificável na descrição dos “negros” e “mulatos”, pois o primeiro é caracterizado de forma negativa enquanto que o segundo se apresenta de forma mais positiva no romance.
Na vida do autor encontramos vários fatores que podem ter influenciado na construção dos personagens de sua obra. Aluísio de Azevedo nasceu no Maranhão, uma das regiões do Brasil com maior número de escravos e onde a cultura negra é muito forte; era filho de pais descasados o que, conseqüentemente, deve ter feito com que passasse por discriminações e preconceitos na sociedade em que viveu; morou no Rio de Janeiro, reconhecido como o berço do samba e do carnaval, e escreveu “O Mulato”, romance que marcou a primeira aparição do negro na literatura brasileira em contraposição aos escravistas de sua terra natal.
Proclamado como “O primeiro romancista de massas” da literatura brasileira, a cultura popular é retratada através dos personagens negros em “O Cortiço”: A comida, a música, a dança e algumas gírias são elementos dos costumes cujas origens estão registradas em nosso folclore de tradição africana.
A personagem Bertoleza, mulher trintona, negra e escrava, representa a sociedade escravocrata em processo de abolição e a vulnerabilidade social, pois mesmo estando supostamente “forra”, continua trabalhando como uma escrava e sendo submissa ao seu companheiro João Romão.O seu papel na obra possui várias interpretações: sob o ponto de vista positivo, a vida do português não teria melhorado e o Cortiço não existiria se Bertoleza não se juntasse a ele, pois foi com o dinheiro dela que o patrício pode comprar um terreno e fazer uma casinha para os dois morarem (antes disso ele dormia no balcão da venda).Na frase “O vendeiro nunca tivera tanta mobília” [...] (p.25),notamos a mudança significativa de condições que a ludibriada companheira lhe proporcionou, ajudando - o também na compra do terreno para o Cortiço.Podendo ter prosperado à custa do próprio trabalho em sua quitanda, Bertoleza ajuda a enriquecer o seu companheiro e é desprezada após o português ambicionar ares de nobreza e ascender na escala social.Neste momento aparecem os sentimentos, senso de justiça e auto - estima da personagem, quando conversou pela última vez com João Romão:

“_ Você está muito enganado, seu João, se cuida que se casa e ma atira à toa! exclamou ela. Sou negra, sim, mas tenho sentimentos! [...]”[...] “Você é fino, mas eu também sou![...]” “_Ora essa !Quero ficar a seu lado!Quero desfrutar o que nós dois ganhamos juntos!quero a minha parte no que fizemos com o nosso trabalho!quero o meu regalo, como você quer o seu![...]” “_Ah! agora não me enxergo!agora eu não presto para nada! Porém quando você precisou de mim não lhe ficava mal servir-se de meu corpo e agüentar a sua casa com o meu trabalho! Então a negra servia para um tudo;agora não presta para mais nada , e atira-se com ela no monturo do cisco![...]” ( p. 197).

Essas são suas únicas falas na obra suicidando-se logo após, diante do seu amante e da polícia.
Sob o ponto de vista negativo, sua representação está numa condição total de inferioridade: suja, fedorenta, feia, descrita como um animal, submissa, ignorante e sem emoções.
Em contraposição à forma pejorativa em que foi descrita Bertoleza, temos a mulata Rita Baiana, representante da personalidade brasileira e da nacionalidade. Foi através dela que o autor mostrou a maioria dos costumes populares: a música (pelo seu namorado Firmo), a dança, a comida e a bebida (o café e o parati), e atribuiu-lhe também inúmeras qualidades: é livre,bela, asseada, perfumada, alegre, independente, solidária, querida por todos do Cortiço, tem bons sentimentos, sabe cantar e dançar. Sua naturalidade baiana lhe conferiu sensualidade e rebeldia e, desde o momento em que aparece na obra, possui voz própia. Sob o ponto de vista negativo, a mulata é imoral, infiel, irresponsável, preguiçosa, de comportamento malicioso e pervertido, dominado pelo desejo e estímulos sensoriais.
As criadas de Miranda, Isaura e Leonor, também possuem descrições diferenciadas devido às suas etnias: Isaura é mulata, moça e tola; enquanto a “negrinha” Leonor é “lisa e seca”, tem carapinha e conhece a vasta “tecnologia da obscenidade”.
Marciana e sua filha Florinda apresentam também as mesmas características de Rita: a mãe é uma mulata respeitável e obcecada pela limpeza de sua casa, e sua filha uma morena bonita, cobiçada por seus atributos físicos e virgindade. A gravidez de Florinda desencadeou loucura e morte de sua mãe, enquanto que ela retorna à Avenida São Romão com os mesmos trejeitos de sua amiga baiana.
Essa diferenciação entre os negros e os mulatos continua presente nos personagens masculinos, porém não há uma caracterização tão evidente devido à falta de personagem negro para a contemplação.
O mulato Firmo é a figura do malandro carioca, o que também pode ser considerado símbolo do nacionalismo. Sua descrição intercala-se entre caracterização física positiva e a de personalidade negativa: é forte, perfumado, limpo, chefe de capoeira e sonha com um emprego no serviço público, porém é mulherengo, violento, vadio e cachaceiro. Junto de seu amigo Porfiro, mais escuro que ele e de cabelo “carapinhado”, tocam o samba e o choro - ritmo ligado tradicionalmente ao negro contraventor, esperto, sedutor e preguiçoso - mostrando assim mais dois costumes da cultura popular: o samba e a capoeira. Após ser assassinado por Jerônimo e seus amigos, esse acaba adquirindo a mesma personalidade de Firmo, o que o autor caracteriza como “abrasileirar-se”.
Alexandre, também mulato, encarna, entre a vizinhança a figura da lei; é policial de “queixo sempre escanhoado e um luxo de calças brancas engomadas e botões limpos na farda [...]” (p.45). Simpático e amigo de todos quando não está fardado, Alexandre tem uma porção de filhos o que pode ser interpretado como um representante da virilidade do homem “mulato” (ou será do homem “policial”?).
Nesta obra, temos um personagem sem cor: Albino, tipo afeminado que possui uma doença chamada albinismo – ausência de melanina, substância que dá cor à pele – descrevendo-o como “cor de espargo cozido”, o autor o fez representante do homossexualismo, o que era considerado na época também uma doença. Recluso por sofrer preconceito, o rapaz só saía do cortiço nos dias de carnaval, sua verdadeira paixão. A ligação carnaval e sexualidade é outra tradição cultural que o escritor não poderia deixar de fora. Sob o ponto de vista positivo, é descrito como uma pessoa caprichosa e querida por todos. Esse personagem albino também é marcado pelo Darwinismo, pois essa doença acontece com mais freqüência em pessoas negras.
Em meio a essas reflexões, podemos concluir que a diversidade racial na obra de Aluísio Azevedo é apresentada de forma estereotipada e influenciada pelas teorias vigentes no seu século, porém, o que infelizmente não podemos deixar de observar é que o racismo ainda continua, mesmo de forma disfarçada na nossa sociedade e cultura, principalmente em novelas. Em Duas Caras, novela global de horário nobre, é ainda mais evidente a discriminação racial que, mesmo sendo discutida ao longo dos capítulos, mostra os negros de forma estereotipada. Aliás, essa trama é considerada uma readaptação do livro que aqui analisamos.

Nenhum comentário: