segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O determinismo como influência na construção

O determinismo como influência na construção
dos retratos humanos em “O cortiço”
Vanderléia Costa

O cortiço, escrito por Aluísio Azevedo em 1890, é a obra que melhor representa a estética naturalista no Brasil.
Das principais características deste estilo literário, que foi um prolongamento do Realismo, temos o Determinismo em todos os seus desdobramentos: do meio ambiente, do instinto e da hereditariedade. Da mesma forma, podemos perceber que o autor foi altamente influenciado pelo Evolucionismo, ou seja, os preceitos defendidos por Darwin de que as espécies se derivam mutuamente e são resultado da seleção natural. Assim como o Positivismo, onde o que impera é o predomínio da observação.
De acordo com o Evolucionismo, o narrador apresenta na sua visão naturalista o ciclo da vida humana: procriação, nascimento, existência sob o domínio dos instintos, e morte. Essa seqüência podemos observar pelo trecho:
“À proporção que alguns locatários abandonavam a estalagem, muitos pretendentes surgiram disputando os cômodos desalugados. Delporto e Pompeo foram varridos pela febre amarela e três outros italianos estiveram em risco de vida. O número dos hóspedes crescia, os casulos subdividiam-se em cubículos do tamanho de sepulturas e as mulheres iam despejando crianças com uma regularidade de gado procriador,”pág.119.
Influenciado pelo Determinismo e pelo Positivismo, o autor cria os seus personagens, ou melhor, observa-os como se estivessem em um laboratório de análise científica. Quase todos os personagens em O cortiço sofrem com ação do meio, é como se o ambiente fosse o personagem principal da obra, ele determina as características e o estado de cada indivíduo.
Portanto, o ambiente em que se passa a obra, um cortiço, é realmente muito significativo, pois se tem a idéia de que ele “germina” os personagens, que brotam como plantas ou procriam-se como animais, como podemos verificar pela seguinte passagem:
“E, naquela tarde encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco”, pág. 28.
As características naturalistas apresentadas anteriormente são muito importantes para entendermos os retratos humanos representados na obra, porque afinal os personagens viviam para e com o meio.
No patamar de papel importante e sobressaliente na obra, poderíamos destacar vários, desse modo começaremos falando sobre João Romão, o idealizador da estalagem.
Romão é o personagem que vence o meio. Com sua ganância, mesquinharia e avareza, ele abre mão do conforto no início para alcançar um ideal de nobreza . Para ele, não bastava ser rico e poderoso, João Romão queria ser titulado nobre, e para alcançar esse objetivo ele passou por cima de quem quer que fosse. Cometeu pequenos furtos no início com a ajuda de Bertoleza, enganou seus clientes no peso e na medida dos produtos que vendia em sua mercearia, emprestava dinheiro a juros altos. Além disso, empregava os trabalhadores em sua pedreira com a condição de que morassem em sua estalagem e comprassem em sua mercearia, com isso, tudo se transformaria em uma grande engrenagem, onde o dinheiro que saía para o pagamento dos trabalhadores retornaria para as suas mãos.
Não se pode negar que ele é um personagem muito determinado, usou de sua determinação e força física para alcançar seus interesses, porém não levou ninguém com ele, ao contrário, usou de quem pode, tudo, e sugou até a última gota o suor de sua companheira Bertoleza.
João Romão necessitava de alguém para lhe ajudar, e a escrava Bertoleza “caiu como uma luva”. Por isso, Romão forjou uma carta de alforria para que a escrava pudesse lhe servir, imaginado que estava livre.
A personagem Bertoleza retrata um tipo humano feminino de servidão e acomodamento, típico da época em que a obra foi escrita.
A ganância que impelia o personagem de João Romão não fazia parte das características desta mulher. Não que ela não tivesse ideais, pois queria ser aceita como mulher de um homem português, considerado de uma raça superior a sua, isso a fazia sentir-se mais valorizada e a estimulava a labutar diariamente como um animal de carga. Essa afirmação pode ser comprovada pelo trecho:
“Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada e de amante. Mourejava a valer, mais de cara alegre; às quatro da madrugada estava já na faina de todos os dias, aviando o café para os fregueses e depois preparando o almoço para os trabalhadores de uma pedreira que havia para além de um capinzal aos fundos da venda. Varria a casa, cozinhava, vendia ao balcão da taverna quando o amigo andava ocupado lá por fora; fazia a sua quitanda durante o dia no intervalo de outros serviços e à noite passava-se para a porta da venda, e, de fronte de um fogareiro de barro, fritava fígado e frigia sardinhas, que Romão ia pela manhã, em mangas de camisa, de tamancos e sem meias, comprar à praia do peixe. E o demônio da mulher ainda encontrava tempo para lavar e consertar, além da sua, a roupa do seu homem(...)”pág. 21.
Entretanto, assim como os animais sentem a rejeição do dono, Bertoleza percebeu que Romão tinha outros planos que não a incluíam, foi tornando-se amarga e trabalhando mecanicamente até o seu suicídio. Bertoleza, quando descobre que foi enganada e voltará a ser escrava, acha-se encurralada e, sem alternativa de fuga, mata-se em frente aos policiais que vieram capturá-la.
No entanto, outros tipos de personagens femininas compõem o retrato d’O cortiço. Em oposição à Bertoleza, temos a figura de Rita Baiana, que, ao contrário daquela que é dominada, esta domina o meio, manipula e desencaminha.
A semelhança entre Bertoleza e Rita Baiana está somente em sua descendência africana. Rita Baiana é a representação da terra, nesse caso do Brasil, o país que acolhe, encanta com suas formas, domina com seus costumes. Essa personagem age como uma aliada do determinismo, ela cativa a todos e desencaminha Jerônimo, mais por instinto do que por interesse.
Jerônimo é o personagem que faz um contraponto com João Romão, enquanto este vence o meio, aquele é vencido e desencaminhado. Os dois personagens são portugueses que vieram para o Brasil com o intuito de enriquecer; logo que chegam, devido à disposição de ambos para trabalhar e economizar, eles se assemelham. Porém seguem caminhos contrários, enquanto João Romão usa artifícios ilegais e imorais para alcançar seus objetivos; Jerônimo é o trabalhador honesto e responsável pai-de-família. Entretanto, sucumbido pelos encantos de Rita Baiana e dominado pelas influências do ambiente em que vive, não consegue manter suas convicções, suas características culturais e sua moral elevada por muito tempo. Na passagem a seguir podemos observar a transformação que o meio inculca no personagem.
“Uma transformação, lenta e profunda, operava-se nele, dia a dia, hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos, num trabalho misterioso e surdo de crisálida. A sua energia afrouxava lentamente: fazia-se contemplativo e amoroso. A vida americana e a natureza do Brasil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam; esquecia dos seus primitivos sonhos de ambição, para idealizar felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal, imprevidente e franco, mais amigo de gastar do que de guardar, adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres e volvia-se preguiçoso resignando-se, vencido, às imposições do sol e do calor, muralha de fogo com que o espírito eternamente revoltado do último tambor entrincheirou a pátria contra os conquistadores aventureiros.
E assim, pouco a pouco se foram reformando todos os seus hábitos singelos de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se” pág. 79.
Além dos personagens que já foram citados, temos uma personagem feminina muito representativa na obra, Pombinha, com suas características de menina meiga, doentinha, atenciosa e disposta a ajudar quem precisasse que lhe escrevessem uma carta (habilidade rara na época), não se encaixava naquele meio, naquele antro de perdição.
Influenciada pela mãe, Pombinha casa-se após longo período de espera que a natureza faça o seu papel de transformar a menina em mulher. Só que essa mesma natureza que transforma o corpo da menina a envolve em desejos que vão além de uma vida pacata como dona-de-casa, mãe e filha exemplar.
Pombinha deixa-se conduzir por seus instintos, sucumbe à luxúria e ao adultério. Sem outra alternativa para a sua vida, e a única que escolheu, junta-se a Léonie, uma famosa prostituta que desde o início nutre pela menina um profundo desejo.
Nota-se que o autor na tentativa de representar com veemência os vários tipos humanos e suas peculiaridades, abordava assuntos como o lesbianismo e a prostituição, que não tinham vez na literatura até então, assim como põe em cena os efeminados e homossexuais representado pelo personagem Albino.
Todos os personagens são descritos em sua forma mais rudimentar e minuciosa para prevalecer ainda mais a verossimilhança, como podemos constatar pela descrição do personagem Albino:
“Fechava a fila das primeiras lavadeiras o Albino, um sujeito afeminado, fraco, cor de espargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caía, numa só linha, até o pescocinho mole e fino. Era lavadeiro e vivia sempre entre as mulheres, com quem já estava tão familiarizado que elas o tratavam como uma pessoa do mesmo sexo(...)” pág.40.
Voltando-se para a descrição, temos em primeiro plano o meio em que vivem e são retratados os tipos humanos na mesma proporção em que o cortiço vai se transformando e evoluindo, seus moradores também.
Aqueles que não se encaixavam mais na nova estalagem iam, ou por vontade própria ou expulsos, abandonando seus cômodos e migrando para outra estalagem que recebe os “dejetos” da São Romão, o Cabeça-de-Gato.
Mudando o ambiente, muda a representação dos personagens, os moradores antigos são substituídos por outros, trabalhadores em geral, entretanto mais valorizados e culturalmente mais respeitados, como artistas, pintores, alfaiates, comerciantes, etc.
Na passagem a seguir podemos verificar bem essa mudança:
“E, como a casa comercial de João Romão, prosperava igualmente a sua avenida. Já lá se não admitia assim qualquer pé-rapado: para entrar era preciso carta de fiança e uma recomendação especial. Os preços dos cômodos subiam, e muito dos antigos hóspedes, italianos principalmente, iam, por economia, desertando para o Cabeça-de-Gato e sendo substituídos por gente mais limpa. Decrescia também o número das lavadeiras, e a maior parte das casinhas eram ocupadas por pequenas famílias de operários, artistas e praticantes de secretaria. O cortiço aristocrizava-se” pág 176.
Analisando esses personagens e seus respectivos retratos humanos da sociedade, na época em que foi escrita a obra, podemos verificar a forte influência do Determinismo na construção e desenvolvimento das características na descrição dos personagens e do meio social.
Segundo o fundador da estética naturalista, Émile Zola, o qual foi objeto de inspiração para Aluísio Azevedo, na sua obra Le roman experimental, publicada em 1880, afirma: “O romance experimental substitui o estudo do homem abstrato e metafísico pelo homem natural, sujeito a leis físico-químicas e determinado pela influência do meio”(D’Onofrio apud Zola,2002, pág.381).

Referências Bibliográficas
GONZAGA, Sergius. Manual de Literatura Brasileira; 11ª ed.. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994.
D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental. São Paulo: Ática, 2002.
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Moderna, 1993.

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