quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

"Apenas mais uma história de leitura", por Pâmela Andressa Bonilha Einsfeld

A leitura possui um importante papel na formação de um indivíduo. Foi ao entrar na faculdade que descobri isso.
Ao receber a proposta de elaborar um memorial de leitura, confesso que fiquei bastante preocupada. Diferentemente dos meus colegas, que cursam Letras porque apreciam a leitura desde a infância ou adolescência, fui apresentada aos livros em função da faculdade. Enquanto cursava o terceiro ano do Ensino Médio pelas manhãs, às tardes freqüentava um cursinho pré-vestibular que me trouxe um importante conhecimento: o de que eu não conhecia nada. Era surpreendente chegar todos os dias na aula do cursinho e ter “matéria nova”, principalmente nas disciplinas de Matemática, Física e Química. Foi aí que entendi a “boa” educação que as escolas estaduais me proporcionaram e o quanto eu era imatura para participar de um processo de seleção tão seletivo quanto o da UFRGS.
Além das “matérias novas”, fui apresentada às “novas disciplinas”, como História e Literatura. Não que eu não as tivesse cursado na escola, mas não da forma como o cursinho apresentou. Fiquei apaixonada! As aulas de História retinham completamente minha atenção, quase esquecia de respirar. Com a Literatura não foi diferente. Eram tantas informações curiosas – e eu, particularmente, tenho fixação por captar informações – que me davam a impressão de estar conhecendo, naquele momento, o ser humano e o mundo, e de que forma estes funcionavam.
Como os cursinhos possuem um ritmo bastante acelerado, nas aulas de Literatura, estudávamos um livro por aula. Na realidade não líamos, o professor era encarregado de explicar, sucintamente, as características históricas da época em que a obra foi escrita e da obra propriamente dita. Então nos envolvia com as histórias e expunha fragmentos dos poemas, deixando a gurizada cheia de vontade de ler. Lembro-me de que a poesia ganhou grande significado na minha vida. Achava linda a forma como os professores recitavam aqueles versos; eu gostava de tentar desvendá-los. Passei a escutar músicas, digamos, com “outros ouvidos”. As palavras e seus significados passaram a ter valor maior que seus arranjos sonoros. Muito da MPB e dos grandes compositores conheci nas aulas de História e Literatura sobre o golpe militar e a Tropicália, respectivamente. Aliás, estas duas disciplinas juntas eram imbatíveis.
Naquela época, a UFRGS exigia em suas leituras obrigatórias obras como “Rosa do Povo”, de Carlos Drummond de Andrade, “O Continente”, de Érico Veríssimo, “Os Lusíadas”, de Camões, “Contos Gauchescos”, de Simões Lopes Neto e “Dom Casmurro” e alguns contos do Machado de Assis. Fiz questão de listar todas as obras exigidas no vestibular do ano de 2001, pois, para uma pessoa que, praticamente, nunca havia lido nada além de gibis e revistas acéfalas adolescentes, foi um desafio radical propor tais leituras. Cada uma delas possuía uma dificuldade a ser vencida: o texto metafórico de Drummond me fazia lembrar o mandarim, o volume de leitura que o texto do Veríssimo exigia era quase invencível e a estrutura do texto de Camões era complicada. Embora os termos gauchescos de Blau Nunes me fizessem sentir uma índia amazonense de férias no Alegrete, ainda assim consegui ler. O que me salvou, se é que posso dizer isto, foram as obras do Machado de Assis, que eram leituras mais agradáveis e menos extensas que as demais.
Juntamente com os outros dois vestibulares da UFRGS que fiz, vieram novas leituras obrigatórias. Não me recordo em que ano o vestibular passou a exigir “Os Ratos” do Dyonélio Machado, no entanto, recordo que detestei as dez primeiras páginas do livro e, por isso, não terminei de ler. Também não recordo por que o detestei.
Quando prestei meu primeiro vestibular me inscrevi para Arquitetura. Apesar de gostar de História, Português e Literatura, mesmo sem o hábito de ler, sempre simpatizei com a matemática e o desenho, acho que por motivos genéticos. Por não ter conseguido ser aprovada, no ano seguinte tentei ingressar no curso de Economia, e no seguinte, para Letras com ênfase em Língua Portuguesa. Como não sabia qual curso fazer, acabei optando por Letras por influência da família. Era inadmissível demorar mais um mês para ingressar na faculdade e meu curso técnico de Contabilidade já estava acabando. A Universidade Federal deixou de ser uma opção única. A partir daquele momento eu teria que trabalhar durante o dia para pagar minha faculdade à noite. A possibilidade de cursar Arquitetura foi completamente excluída da minha vida. Era necessário escolher um curso que trouxesse segurança financeira ou, pelo menos, certeza de emprego certo após a formatura – nos dias de hoje isso parece piada.
Quase enfartei minha pobre mãe quando afirmei que estava interessada em cursar Ciências Sociais na PUC. Este curso obedecia a quase todos os critérios estabelecidos pelos meus pais, menos o tal do emprego após a formatura. Então, meu leque de opções reduziu-se à Licenciatura, qualquer uma, desde que Licenciatura. Não tive dúvidas em afirmar que queria cursar História, mas minha mãe, novamente ela, com sua experiência de vida, disse-me que disciplinas com maior carga horária, como Português e Matemática, possibilitavam que os professores tivessem um número reduzido de turmas, ou seja, enquanto um professor de História possuía cinco turmas, um de Português ou de Matemática teria somente duas ou três, logo, menos provas e trabalhos para corrigir (sonho meu, e dela).
O que parecia impossível aconteceu: meu leque reduziu ainda mais. Meu pai decidiu meter a colher e sugeriu, como administrador de empresas, que eu cursasse Inglês. Achei uma loucura, pois não sabia articular nem a clássica “o livro está na mesa”, seria insanidade total entrar na faculdade nestas condições. Como meu complexo de Electra estava resolvidíssimo, optei por Letras Português, pois preferia a morte a ser professora de matemática como minha mãe. E finalmente entrei na faculdade.
Nunca vou esquecer da frase que minha professora de Teoria Literária, Profª. Vera Medeiros, lá na FAPA, disse no primeiro dia de aula. Na tentativa de situar a nova turma do curso de Letras ela afirmou: “Este é um curso bastante difícil e que exige dedicação e esclarecimento. Haverá muitos fins de semana em que vocês terão que passar o dia inteiro lendo. E será importante que vocês conscientizem seus familiares de que ficar sentado lendo o dia inteiro faz parte da profissão de vocês e não de uma atividade lúdica”. Pronto, essas foram as palavras mais assustadoras que eu havia ouvido na minha vida depois do “I see dead people”. Tudo o que eu precisava era escutar os meus pais me chamando de preguiçosa, vida fácil, irresponsável. Certamente isso aconteceria, pois meu pai odeia ler e minha mãe só gosta de livros que possuam números. Eu estava frita.
A minha família sempre reconheceu a importância da educação e da leitura. Meus pais doutrinaram a mim e a meu irmão a estudar e ler através de discursos emblemáticos de “quem não estuda morre de fome”, mas sem nenhum exemplo. Na prática, não tínhamos o modelo de pai ou mãe leitor, não havia nenhuma espécie de livros de literatura em casa, e, na escola, nenhum incentivo à leitura. Para não ser injusta, na segunda série do Ensino Fundamental, a escola trouxe a autora de um livro vendido às crianças intitulado “O Pau-Brasil”. Na realidade, aquela obra serviria para um estudante de Botânica ou Geografia. Era cheio de fotos do dito cujo Pau-Brasil e possuía um texto desinteressante que orientava seus leitores sobre onde encontrar Pau-Brasil, no Brasil.
A primeira obra que li para a faculdade foi “Frankenstein” da Mary Shelley. A mãe do meu namorado havia me emprestado. Morria de vergonha diante dela, pois ela foi professora de literatura durante vinte anos na UNISINOS. Li com bastante dificuldade, não que o livro fosse difícil, mas sofri cada palavra do capítulo treze da obra. Nessa altura, minha paciência gritava comigo. Eu não via a hora daquele monstro morrer ou matar, qualquer coisa que fizesse o livro acabar de uma vez.
Fui me acostumando dia após dia com a leitura. A carga de livros exigidos por disciplina na FAPA era muito grande, aproximadamente uns sete livros por cadeira além dos polígrafos exigidos em aula. Como eu queria cumprir o currículo certo da faculdade e me formar em quatro anos, fazia sete cadeiras por semestre. Logo no primeiro ano de faculdade ganhei uma miopia de um grau e aprendi a ler de pé, carregando mochila e sacola com uniforme e marmita dentro de ônibus cheio e em movimento. Antigamente, se abrisse um livro estando em movimento, ou vomitava ou dormia.
No primeiro ano li obras como “Dom Quixote”, “A hora da estrela”, “Cavaleiro inexistente”, “Odisséia”, “Édipo rei”, dentre outros, como um livro de crônicas do Afonso Romano de Sant’Anna, que na ocasião achei uma chatice, porque havia lido anteriormente e comparado com o “Pensar é transgredir”, da Lya Luft que achei muito legal.
Foi no segundo ano de faculdade que me identifiquei monstruosamente com o curso. Além das maravilhosas aulas de Latim, tive disciplinas como Literatura Ocidental e Literatura Latina. Li “Ilíada”, “Lisístrata”, “A arte de amar”, “Tróia, um romance na guerra”, “Trilogia de Orestes”, “Eneida”, “Tristão e Isolda”, “Saber envelhecer”, as comédias de Plauto e Terêncio, “O Avarento”, “A divina comédia”, alguns contos do “Decameron” e “Medeia”. Tenho uma fixação por tragédias gregas. Fiquei apaixonada por Fernando Pessoa, seu texto “poema em linha reta” é meu preferido. Fui apresentada à “Madame Bovary”, chatíssima, ao “Conde de Monte Cristo”, ao “O médico e o monstro”, à “Senhora”, à “Iracema”, à “Moreninha”, aos lindos versos do Pe. Antônio Vieira, aos “autos” de Gil Vicente, ao “Um quarto de légua em quadro”, à “As virtudes da Casa”, livro muito semelhante à tragédia grega que envolveu Clitemnestra e Electra. Este semestre tive a oportunidade ímpar de conhecer a literatura infanto-juvenil, muito rica e muito divertida. Afirmo que foi uma oportunidade única, pois para mim foi muito importante ter contato com uma realidade que não vivi na época certa, ou seja, minha infância. Pode parecer surpreendente, mas, à exceção do conto de fadas “O chapeuzinho vermelho” e “Cinderela”, eu não conhecia a história do “Pequeno Polegar” e do “O soldadinho de chumbo”, entre outros.
Na realidade o meu universo como leitora só se cristalizou a partir do ano de 2004 quando ingressei no curso de Letras.
Não foi uma tarefa fácil, mas a “ferro e fogo” procurei ler para cumprir as obrigações de uma aluna de Letras. Porém, à medida que lia e fazia cursos de extensão sobre literatura, como, por exemplo, “A Mitologia e a Literatura Ocidental”, cursada na FAPA, mais e mais me encantava pelos autores e suas obras. A partir das muitas leituras que realizei, percebi, com o passar do tempo, que me tornava outra pessoa. Era impossível permanecer a mesma Pâmela depois de, por exemplo, conhecer as teorias de Epicuro, ler todas as tragédias gregas que li, ou de ter feito uma pesquisa minuciosa sobre a peste negra para entender melhor o que se passava nos contos do Boccaccio, ou de me encantar com o mundo da cultura celta e simbólico de “Tristão e Isolda”.
Não só as leituras davam-me prazer pelo prazer, mas me levaram a pensar, a refletir sobre o universo em que estamos inseridos. Notei, então, o quanto um livro mexe com a gente e o quanto nos acrescenta.
Machado de Assis foi meu anfitrião. E eu não poderia ter iniciado com autor melhor. Sua “Cartomante”, o Sr. “Brás Cubas”, os olhos da Capitu, entre outros, me fizeram mergulhar na interioridade humana e conhecer melhor o homem: sua alma, suas mesquinhezas, seus medos, seus anseios, sua maldade, seus desejos. Encarar as tragédias gregas, após Machado, não foi tão difícil. Estas se eternizaram por representar o homem de todos os tempos diante de sua condição humana. Fiquei diante dos homens que construíram a história da humanidade. Homens que a partir de suas ações definem a sua trajetória de vida para a felicidade ou infelicidade; homens com grandeza de alma mas que, por seus erros ou por sua ignorância, pagaram alto preço, como, por exemplo, Agamenon, Medeia e Édipo. De repente, meu interesse pelas coisas do mundo e sobre os seres humanos ganhou um forte aliado: o livro de literatura.
Hoje, pensando essas leituras, vejo que andei bastante, embora o caminho do leitor seja bem maior. Nesses poucos anos no curso de Letras tive oportunidades e na medida do possível aproveitei-as: li, não tanto quanto devo, mas o suficiente para perceber que podemos seguir em frente lendo com qualidade.
Não cheguei a mencionar que fiquei bastante preocupada em optar pelo curso de Letras. É complicado ficar indiferente a esta escolha quando nunca, até então, se teve um contato mais direto com a leitura. Ser professora era uma idéia pavorosa. Das minhas brincadeiras da infância, brincar de “escolinha” era incogitável, eu preferia fingir que era bombeira, policial, ou alinhar minhas amiguinhas atrás de mim e pegar a escova de cabelos da minha mãe e cantar o “Ilariê” da Xuxa, como toda boa leonina, eu sempre era a Xuxa. Minha mãe chegou a comentar que minha vida tem se desenhado com uma história de superação. Meu guarda-roupas sempre foi uma bagunça, nunca gostei de ficar enclausurada no quarto arrumando-o nem tinha o menor interesse por ler. No entanto, meu primeiro emprego foi numa loja de roupas, meu segundo emprego foi de arquivista num escritório de advocacia e minha faculdade foi de Letras. Honestamente, todas estas experiências foram fundamentais para o meu desenvolvimento.
De volta ao meu nervosismo diante da minha, a princípio, incompatibilidade com a possibilidade de tornar-me professora de Português e Literatura, meu namorado percebeu minha resistência em aceitar a idéia e, como meus pais, também deu sua opinião. Disse-me ele que o curso de Letras me tornaria um ser mais completo, pois me traria a maturidade a partir da cultura que as leituras me dariam e do conhecimento mais aprofundado na língua portuguesa. Segundo ele, com os benefícios que a graduação em Letras traz, eu estaria preparada para cursar qualquer outro curso ou investir na carreira da educação, caso algumas destas opções eu achasse interessante seguir. É com felicidade que, após quatro anos, eu reconheço a importância de suas palavras, pois ele estava certo e me trouxe segurança que faltava para investir num curso maravilhoso que meus pais ajudaram a escolher. E é por isso que eu dedico este trabalho a esta pessoa tão importante.

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