quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

"Reminiscências", por Edney Duarte Fagundes

Sem nenhum esforço, dor ou sentimento giro minha cabeça em 180° e olho para trás.
Me vejo lendo, há muitos anos passados um gibi do incrível Hulk. Por certo que devo ter tido outras leituras mais amenas ( tipo Walt Disney ) antes dessa visão, embaçada pelo tempo e, como em certo romance do Machado de Assis, alterada significativamente pelas transformações ocorridas no “eu” leitor, que obviamente, em muito difere do eu que ora escreve.
O inusitado, no que passo a narrar, é que tudo o mais me foge – a história, conflitos, soluções, etc. – restando-me unicamente a reprimenda representada pelos olhares mais do que irônicos de meus irmãos mais velhos. E não me recordo de quatro crianças em uma sala ou um quarto de uma modesta casa de madeira. Não. Vejo-os com as rostos de agora; e as gargalhadas de agora, incrustadas naqueles corpos pequenos, me diminuem ainda mais do que deve ter reduzido à época.
Neste momento pensei em fazer uma digressão sobre o episódio e a luz de um explicar sensato, fundado em observações criteriosas e portanto empíricas, considerá-lo mister na definição de minhas relações com a linguagem, principalmente no tocante ao seu uso mais imediato e direto: a fala. Sim, porque houve(ram) - plagiando Raul Seixas: eu cuspo na regra! – momentos em minha vida em que acreditei firmemente que a minha única possibilidade de comunicação neste, e com este, mundo se daria pelo uso da palavra escrita.
Mas retomemos a sala/quarto na longínqua Bento Gonçalves, nem tanto fisicamente mas apartada pela distância temporal, lá estão as crianças sentadas no chão – talvez todos lendo gibis, imagino – quando, de repente, uma delas tem uma dúvida semântica e pergunta o significado de uma palavra. Mas não obtém resposta. Só risos, galhofas, gargalhadas ...






Sobre os gibis, minhas primeiras leituras, os li de todos os tipos, com alguma predileção pelos super-heróis problematizados, com identidade secreta e psicologicamente afetados por envolvimentos amorosos e de outras relações humanas, perdidas no meio-tempo em que não são supers – apartados do individual e comprometidos com o bem comum; como os políticos.

Imagino como seria hoje.
Aquele bando de guris. De calções e chinelos de dedo. Não direi a marca, apenas direi que era popular, e, como a sociedade ainda não era tão consumista, se gastava a sola até o fim, trocando as tiras quando necessário. Alguns poucos de calça e sapato ou tênis, também não digo a marca, mas só existia uma. Muitos remendos nos joelhos. A pilha de gibis nos braços. Procurando determinadas edições, ofertando outras. Trocando, comprando, vendendo. È bem verdade que os cinemas eram na rua. Que shopping abrigaria dantesca cena em frente à “suas” salas de cinema?
A nostalgia empresta ao passado um brilho que certamente não tinha, mas não importa, quando alguma coisa detém algum poder não nos cabe contestá-lo.

Dos gibis, ou melhor, conjuntamente com eles, fiz muitas incursões à biblioteca do grupo escolar. Lá conheci a Emília, o palhaço Arrelia , alguns garotos em férias. Aventuras, Andersen, Grimm, lendas, poderes; o bem e o mal, assim, bem delimitados. Aqui cabe outra digressão. Teria sido sempre traumática minha relação com a leitura? Sim, porque desenvolvi um senso por demais crítico à todas minhas más ações. Apenas lhes digo que não foram poucas e nem boas. Não cabe aqui declinar sobre elas. Talvez em outro capítulo. Talvez.







Lembro também dos álbuns de figurinhas, muito embora a imagem nem sempre seja considerada leitura, e as poucas legendas com nomes de heróis ou jogadores de futebol não possam também merecer tal rótulo.
A esta época vivíamos literalmente na rua, sem nos preocuparmos e sem que nossos pais se amolassem com a nossa liberdade em tempos de ditadura. A criminalidade, se existia, passava ao largo: coisa de cidade e gente grande. Mas havia um jogo de bater com as mãos nas figurinhas para, uma vez virando-as, conquistá-las, obrigando o outro competidor a investir mais para continuar no jogo. Eu havia desenvolvido uma técnica de movimentos rápidos com a mão em curva que me tornara imbatível. Pena que alguns garotos não estão preparados psicologicamente para serem derrotados. Pelo menos não em público, o que me obrigava a muitas vezes optar por uma saída rápida e estratégica em prol de minha saúde. Me arrisco a dizer, muito embora alguns possam considerar uma atitude covarde, que desenvolvi também uma habilidade quase atlética no ato de me por em fuga, estrategicamente.
Deixamos Bento Gonçalves por culpa dos estudos de meu irmão mais velho que terminara o científico e carecia de uma faculdade. Nos instalamos então em um galpão na casa de um tio em Alvorada. Nesta época ...

Este parágrafo deve ser lido e esquecido, apagado até, afinal, de que serviria na minha formação literária, na minha formação profissional, a infame leitura que aqui tratarei? Tinha algumas em preto e branco e outras coloridas. Artistas brasileiros, italianos. E enredos sobre os quais nem lembro, mas sei que os devorava. Assim como os gibis eu comprava, trocava, emprestava. Lembro de uma morena – na lembrança linda e de longos cabelos negros – que me cedia por empréstimo, porém uma de cada vez, as suas fotonovelas preferidas.






No galpão ficamos pouco, só até se arranjar, o que não demorou. A casa comprada em Alvorada estava hipotecada e tivemos de abandoná-la. No tempo em que vivi nesta cidade só me lembro das leituras do parágrafo anterior. Como não leitura sei que eu não lia os temas de casa. Não lia e não fazia. Nem sei como posso estudar Português. Havia um professor dessa matéria que sempre me chamava, no primeiro período das segundas-feiras, e cobrava o cumprimento da lição. Acho que ele tinha esperanças de que eu me ajeitasse, pois persistiu assim até o fim do ano, sem no entanto lograr êxito.

Na oitava série, que estudei em Porto Alegre na Vila Jardim, apesar de no início
do ano ainda morar em Alvorada, me dispus a caminhar seis quilômetros de ida e mais seis de volta para baixar o dinheiro da passagem. Com esta economia eu pude voltar a comprar gibis. Usados, de preferência. Ler mais por menos. Até hoje é assim. Minha passagem pela feira do livro este ano rendeu um livro do Stanislaw Ponte Preta, um de Heyne e um do Suskind, todas leituras transversais, fora do foco das melhores obras de seus autores e longe dos holofotes; mas bons, digo-lhes porque já os li e - não me considerem mesquinho com a minha leitura - baratos: de balaio. Também comprei um livro sobre Português e Literatura no segundo grau e o Prazer das Palavras do Cláudio Moreno.
O segundo grau o fiz em uma escola técnica e nem me lembro de literatura. Por certo que teve e que eu fui aprovado. È tudo o que posso dizer. Nestes estudos deveriam ter me dado, no mínimo, dois diplomas, tamanho foi o tempo que levei para me formar.

Durante o segundo grau tomei contato com uma outra leitura: a Bíblia. Isto ocorreu quando eu estava no quartel. Eu passava a semana inteira lá - ir para casa daria muitos gastos com passagem - conheci umas pessoas que liam-na e eram pessoas legais, segui-os.






O velho testamento me pareceu muito chato, assim como outras passagens que não fossem parte do Novo Testamento. Este sim me agradou deveras. As parábolas, o sermão da montanha, puxa, que divina forma/força de/ao escrever, não é a toa que se tornou o livro mais lido do mundo.
È de bom grado avisar que fui católico desde cedo, fiz comunhão e crisma, o que eqüivale a dizer que textos ligados a religiosidade já haviam me atingido antes de eu chegar ao exército brasileiro.
Fui muito bem na leitura do Novo Testamento e até me aventurei a acompanhar umas duas reuniões com os outros soldados em uma casa em que se falava sobre Deus, sem ser uma igreja. Uma espécie de grupo de jovens. Ir até lá, se encontrar, conversar, jogar passatempos de mesa, até aí realmente me sai bem. O problema começou quando durante os encontros cada um devia dar seu testemunho de um momento em que Deus se fizera presente em sua semana.
Sem encontrar de fato manifestações do Senhor em minha vida e sem a capacidade de mentir, como pediram meus amigos – diga qualquer coisa boa – tive de abandonar o grupo. Acho que isso também me afastou da Bíblia, nunca mais a li.

Aqui temos um grande hiato e me encontramos novamente lendo ao cursar o Contos de Oficina 7, da PUC, ministrado pelo Luiz Antônio de Assis Brasil. Um dos contos que publiquei nessa antologia já havia sido escrito anteriormente, em um dia de chuva, na beira da praia de Cidreira.
Este curso não sugeria leituras, mas a esta época comecei a ler contos, muitos da série Para Gostar de Ler, do João Gilberto Noll, do Machado de Assis, do Josué Guimarães, do Luiz Fernando Veríssimo, do Rubem Fonseca, do João Antônio e tudo que tivesse a palavra contos.






Depois li os americanos como O. Henry e Breat Hart, os franceses como recomendou Gorki em seu livro Como Aprendi a Escrever e, principalmente os russos. Procurei me ater ao conto porque nunca fui um leitor de fôlego. Li Contos Cubanos, Contos Uruguaios, Contos Argentinos; a maioria das vezes em coletâneas.
As opiniões do Assis Brasil sobre o que eu escrevia sempre foram elogiosas e creio que devo ter feito boas leituras porque uma vez, retornando das férias para o segundo semestre ele, após ler o que eu escrevera, colocou: - Edney, o que tu andas lendo?

Houve um período em que participei de uma série ( quatro ) de oficinas literárias, aqui em Porto Alegre. Após a oficina na PUC freqüentei outra, na UFRGS, com a Léa Masina. Essa mulher atribuiu-me uma qualificação que depois, em outras oportunidades tornei a ouvir, mas, sempre acompanhada de um mas.
Na verdade o termo utilizado foi apesar de, ou literalmente, apesar das.
Era o primeiro trabalho que ela nos retornava. Eu discorrera sobre a morte do “Simplório, um cara tão bom que Deus o requisitara.” – pra dar um jeito nas coisas, sabe-se que este mundinho anda precisando.
Me dá umas ânsias de contar essa história, ainda mais que eu a perdi, aliás, perdi todos os trabalhos dessa oficina, mas não importa. A Léa Masina deixou o meu trabalho por último e lascou:
- O Edney é um cara que pensa, apesar das aparências.
Alguns dirão que foi, no máximo, um meio elogio.










Na casa de cultura principiei uma oficina com o Charles Kiefer - podemos
acrescentá-lo aos contistas lidos anteriormente – mas não a conclui.
Em um trabalho literário fiz uma salada brasileira - missigenei caracteres textuais do Josué Guimarães com alguns contistas americanos – e o Charles não deglutiu muito bem. E olha que na teoria tratávamos de Paródia.
Desisti.
Vim a saber, mais tarde, que ele elogiou outros trabalhos que eu deixara.

Completando a quadrilogia conheci a residência do Lauri Maciel, ali, próximo à Bento Gonçalves – desta feita a avenida – na altura do Colégio Champanhat. Lá, não apenas o anfitrião, mas também meus colegas oficineiros eram garotos bem comportados.
Disseram que eu “dava os ares do Rubem Fonseca” – o Assis Brasil mencionara o João Antônio, que li somente após a comparação – pelos personagens marginais, pelas situações construídas. Imagine que a consumação do amor, ocorrida em um terreno baldio, por detrás de uma pedra, os deixou alvorotados; e pasmem: porque os personagens não se higienizaram após o ato.


Entre as leituras longas li O Nome da Rosa e, recentemente, O Código da Vinci. Outro dia um colega me ofereceu Fortaleza Digital e recusei. Basta um Dan Brown. Mas é preciso ler o que muitos lêem. O crivo do público ainda é um critério de seleção confiável. Assim li alguma coisa de Paulo Coelho e não o considerei nem tão ruim quanto a crítica da época o dizia, nem tão bom quanto o público, ainda hoje, o consome.








O que me trouxe até o IPA também foi uma leitura, porém não literária: um anúncio de jornal. Eram ofertados cursos noturnos de 3º grau, a preços acessíveis e com prova única de redação. A época pensei que poderia concluir um curso noturno exclusivamente no período da noite. Mas não posso.
Das leituras na faculdade duas me chamaram a atenção: Vemon e a Sabedoria Humana e o trecho O Almocreve, de Machado de Assis.
Na primeira, o personagem, soberbamente, se julga conhecedor dos perigos da convivência em sociedade, se isola e crê estar acima de suas agruras. Mas qual, uma a uma ele cai nas armadilhas da vida.
No segundo, o personagem nos traz o lado mesquinho da alma humana e o descaminho – redução na gratificação – narrativo em verdade nos traz o valor real da vida humana em tempos modernos, ou seja, muito pouco.


E o gibi do incrível Hulk?
Lembro perfeitamente o título da histórinha: “O Cruel Tirano”.
Agora diga cruel com a sílaba tônica no “u” e com o ‘e” fechado.
Daqui de onde escrevo antevejo seu sorriso pequeno, quase dissimulado, a fazer coro às gargalhadas e galhofas do passado.
Aperto as última teclas enquanto penso em leituras futuras, silenciosas, de preferência.

Nenhum comentário: