segunda-feira, 2 de março de 2009

Memorial de leitura

“Recordações”, Adriana Brum



São nove horas de uma manhã chuvosa de domingo, a casa dorme, e eu, resolvi “iniciar” meu memorial de leitura. Começo por onde, Deus? Pelo começo – ouço essa voz. Não pense que é do além, não, não é. Sou eu mesma quem responde, talvez (com certeza!) essa minha capacidade de “me ouvir” tenha despertado daí, ou melhor, ali naqueles dias que minha memória alcança...
Lembro de ouvir histórias desde muito pequena, principalmente histórias de terror; não entendia o fascínio que os “adultos” (pai, tios e avós) tinham em nos contar as histórias mais aterrorizantes que uma criança pode “suportar”. Mas é claro que eu e meus irmãos amávamos!
Adorávamos quando um adulto que, aparentemente, estava jogando conversa fora, nos olhava de repente exclamando: - “Vocês não sabem de uma história terrível que eu soube, mas não posso contar, é perigoso...Vocês não vão conseguir dormir!”
Bem, aí não dava outra; implorávamos para que nos contasse, sempre afirmando que não iríamos acreditar, sabíamos que era uma “história”. Minha mãe desmentia tudo, dizia que era tudo bobagem, era só fazermos uma oração, e todo o mal desapareceria.
Os monstros, as bruxas e as almas penadas estavam sempre perto de nós. Nossos primos, pouco mais velhos que nós, nos diziam que o vizinho da casa “tal” era lobisomem – “A vó disse!” (para parecer convincente, lógico). Até uma Senhora idosa que me dava injeção era a bruxa da “Branca de Neve”, em minha cabeça não podia ser outra pessoa... Ela vinha sorrindo com uma injeção nas mãos, ao invés de uma linda cesta de maçãs.
Meu pai sempre gostou de “instigar” nossa imaginação. Éramos cinco filhos e, naquele tempo, tudo o que tínhamos era muito valorizado. Recordo que ganhávamos máscaras de papelão, e delas surgiam histórias; bonecos de.papel também tinham “vida”.
Lembro de livros novinhos chegando em nossa modesta estante. Meu pai sempre acreditou que os livros nos “dariam” o mundo. Não tínhamos dinheiro para comprar roupas novas, mas tínhamos livros cheios de figuras lindas, coloridas e um cheiro de novo que a nada se compara.
Uma das coleções que tínhamos era “Lendas do Sul”; o palhaço Arrelia quem contava as histórias para as crianças no livro. Minha irmã lia para nós, e dizia “Arrélia”, e “toda” a vida rimos disso, deste equívoco cometido por ela. Agora compreendo o “engano”, ela não era “tão grande” como imaginávamos, devia ter uns dez anos; e nós não líamos ainda, sabíamos das histórias através das leituras de nossas irmãs mais velhas.
Depois vieram os livros de Medicina. Nesta época, meu pai deslumbrava nosso futuro como “doutores”, penso. Tento entender por que ele comprou aquela coleção enorme de livros que tinham capas “super” expessas, com letras douradas. Não lembro agora quantos volumes eram, mas eram muitos tão cheirosos quanto a coleção das lendas.
Eu já lia quando nossa estante recebeu estes novos inquilinos, então, como minha curiosidade era “aguçada”, apesar de minha pouca idade, lá fui eu me “debulhar” em cima das doenças... Não sei quantas fotos tinham naqueles livros, mas posso garantir: todas “horrendas”.
Soube ali que não queria ser médica, mas nada me impediu de sentir todos os sintomas (ali descritos) possíveis no diagnóstico de um câncer. Por algum tempo eu era um projeto-hipocondríaco; sentia “tudo” o que lia: cada dor, estágio inicial de possíveis infecções, etc.
Não durou muito meu “fascínio” por doenças. Voltei a ser uma criança saudável, estava cansada de ser “adulta”.
Tenho uma frustração, devo confessar; nunca gostei de histórias em quadrinhos ou gibis, melhor dizendo (não sei bem o porquê). Meus irmãos adoravam! Mas, pensando bem, talvez não gostasse porque eles não me davam a menor atenção quando liam, e não era o tipo de história que se conta a alguém, apenas se lê. Eu não achava “graça” nem nas figuras, nem nas histórias. Enfim, tenho essa “lacuna” em minha vida; sinto-me um “ET” quando penso ser a única pessoa que conheço que nunca gostou de gibi.
Lembrei também agora de que, quando tinha uns 11 ou 12 anos, li escondida (era proibido a nós, filhos) um livro de capa preta do meu pai que falava em feitiçarias, e não era para nós lermos. Ninguém queria ler mesmo, mas eu li, claro. Pensava, o que poderia ter um livro de tão pavoroso e perigoso? Realmente, fiquei abalada por uns dias, assim como quando li o Exorcista; depois passou a fase “busca do medo”.
Na escola entrei em outro mundo da leitura. Quase tudo que líamos aprendíamos o “motivo pelo qual”, “a razão de”, de tal leitura, mas nem por isso, menos interessante. Afinal, tudo o que as professoras nos contavam era sagrado (para mim ao menos). Porém, ao chegar a 7ª ou 8ª série, não lembro exatamente qual, tivemos uma verdadeira “prova de fogo”: ler e “apresentar” o livro “Triste fim de Policarpo Quaresma” do Lima Barreto. Não me lembro de ter vivido situação mais constrangedora que aquela. Não entendi nada daquele livro, quero dizer, não achei a menor graça naquela história; compreensível para uma adolescente de 13 anos.
Ali, tive a sensação de que Literatura era sinônimo de tortura.Depois deste episódio “inesquecível”, qualquer sugestão de livro, pela escola, tinha a mesma sensação: “não vou entender o livro, terei que contar a história, ler e saber como contar, etc, etc”.
Bem, apesar da experiência “bombástica” na escola, lembro de começar a ler tudo que via na minha adolescência; meu interesse pelo mundo do qual não tinha acesso, e que me sentia “pouco à vontade”. As leituras me deixavam ir sem medo. Só podia/conseguia “adentrar” pela porta dos livros, revistas e pela TV, porém eu gostava mais de ler, porque me protegia dos olhares alheios e poupava da “vergonha” por meu interesse (o maior) em “histórias de amor”.
Lia todas as “Sabrinas, Júlias e Biancas” que encontrava, quando estava de férias, na praia. Havia uma lojinha em que nós (eu e minha irmãs) comprávamos “bem baratinho”, e podíamos trocá-las, após a leitura, por outro da “coleção”; era o máximo!
Depois disso, lembro das leituras obrigatórias para o vestibular. Eu queria saber o porquê da importância de tal livro, e acabava sempre buscando, mesmo depois de terminar o ensino médio, autores e obras renomados. Li nessa época “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Dom Casmurro”, “Lucíola”, “Senhora”, “Tocaia Grande”, “Vidas Secas”, “São Bernardo”, “Morro dos Ventos Uivantes” Mais ou menos nessa mesma época, já queria saber de “tudo”. Lia jornais, revistas, qualquer assunto: queria entender tanto de economia quanto da camada de ozônio. Na verdade, fazendo nesta reflexão, percebo o quanto gostava de ler já nessa época, e sem me dar conta; já era um prazer ler.
Quando entrei na faculdade de Letras, não foi uma escolha propriamente dita, foi o que me “sobrou” como bolsista do Prouni, podia escolher alguns cursos, entre eles, Letras Português, que escolhi de fato por causa da Literatura. E sinto-me feliz pela escolha.
Cada indicação dos professores foi uma nova descoberta, ou redescoberta, porque muitos livros eu já havia lido em outras “épocas”. Mas a releitura trouxe um novo “sabor”. Reler Dom Casmurro, por exemplo, foi muito prazeroso. Pensei: como posso me emocionar com um livro que já conheço? Não sabia. Mas, não menos senti ao reler “Memórias Póstumas”, porém neste, como fazia parte de um seminário da obra, tive que “debulhá-lo”, e me dei conta de coisas que sequer imaginava na primeira leitura. Então, soube que é possível sim me encantar novamente por um mesmo livro, porque eu já não sou/serei a mesma.
Na disciplina de Literatura Infanto tivemos leituras que nos fizeram conhecer de fato a “verdadeira” história do “Chapeuzinho Vermelho”. Confesso que fiquei chocada! Não fazia idéia dessa distorção da história original. A leitura do orig “Os três porquinhos” também conheci uma história diferente da que conhecia: “uma mamãe-porca” dispensando seus filhotes de casa, mais uma “surpresa” para mim.
Com “A bolsa amarela” voltei a minha infância, mas penso que qualquer adulto pode se divertir, e muito, com as aventuras da Raquel e sua super-bolsa. Aliás, foi o primeiro livro de Lygya Bojunga que li, e sei que tenho muito a ler desta grande escritora.
Os contos de Machado de Assis também foram leituras marcantes da minha formação acadêmica: “Apólogo”, “O enfermeiro”, “Missa do Galo” e “A Cartomante”. Bem, eu devo confessar que já era fã de Machado de Assis antes da faculdade, mas agora, além de fá, sou apaixonada por ele.
Foi através do curso de Letras que conheci maravilhosos autores como Allan Poe (“O Gato Preto” –macabro), Mia Couto (“O Último Vôo do Flamingo” – mistério e suavidade juntos), Garcia Lorca (“A Casa de Bernarda Alba” – angústia – vi ali minha avó e suas filhas), e outros tantos que certamente ficarei arrasada de tê-los “esquecido” aqui.
Érico Veríssimo não posso deixar de fora desse memorial. Do “Incidente em Antares” gostei demais: os mortos apodrecendo na praça central, indistintos, afinal iriam todos para o “mesmo” lugar. E, o “Continente I” então, nem se fala; o tipo de livro que se começa a ler com preguiça, e depois não se consegue mais parar de ler.
Outras leituras que fiz que deram muita alegria conhecer foram os contos de João Gilberto Noll (já havia lido em férias de verão “Bekerley em Bellagio” e “Lord”- apesar da angustiante, impossível para de ler) e Caio Fernando Abreu que adorei os contos, as cartas. O mais “fresco” em minha memória é “Garopaba mon amour”, escolhi para apresentá-lo por que “Garopaba” era meu lugar de férias maravilhosas. Mas quando fui ler, foi um “soco no estômago”; jurava que iria ver sombra e brisa do mar... No entanto, era tortura na veia, ao som de Rolling Stones (um brinde do autor no meio de tanta desolação). Conhecia o Caio Fernando Abreu de entrevistas de jornais e rádios, adorava ouvir suas opiniões sempre muito sensatas, inteligentes e com pitadas de humor. Então só podia amar sua obra mesmo. Não foi surpresa para mim.
É notável que as leituras que fiz foram fundamentais tanto para minha formação pessoal, quanto profissional. Não seria a pessoa que sou se não tivesse estas leituras em mim, e o encantamento de descobrir outras. Tampouco teria conseguido atingir meu maior objetivo em meu último estágio (de literatura) que era o de despertar em meus alunos o interesse e o gosto pela leitura; pelos olhares (ao ouvirem a leitura) e pelos trabalhos desenvolvidos, acredito que para alguns foi significativo, e para mim muito gratificante.
Muitos alunos disseram que ao ouvirem minha leitura parecia que eu fazia parte das histórias que lia. Pois é assim que me sinto lendo obras que me “prendem” e “preenchem” a mente e o coração. Para mim, a boa literatura é isso, um prazer indescritível; uma experiência única e intransferível. E, como tudo o que é bom, “vicia”!

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