segunda-feira, 2 de março de 2009

As adaptações em “Ímpar”

Fernanda Silva da Roza

A relação entre o escritor de literatura infantil e o seu respectivo leitor, segundo Regina Zilberman (2003), é assimétrica, pois suas experiências e interesses, assim como suas capacidades cognitivas, são imensamente diferentes. Para que essas diferenças não sejam visíveis na obra, o autor deve adaptá-las, procurando que elas tornem-se o mais semelhante possível do universo infanto-juvenil. A partir desse princípio, analisaremos o livro “Ímpar”, de Marcelo Carneiro da Cunha, interpretando e apontando se os níveis de adaptação estão de acordo com as possíveis expectativas do leitor.
Ao lermos “Ímpar”, acompanhamos a trajetória de um menino que, ao sofrer um acidente de carro, perde o braço. Após o episódio, por decisão de seus pais, muda-se para outra cidade, em que, ao buscar tratamento em uma clínica de reabilitação, faz novos amigos “ímpares”, deficientes como ele, que o ajudam a buscar sua nova identidade e, principalmente, a aceitar sua nova condição.
Em um primeiro momento, podemos pensar que o assunto de “Ímpar” trai o leitor, pois trata de diferenças, o que nos lembra preconceito. Parece, nesse caso, que a leitura traz um ensinamento. Porém, se avaliarmos por outro ângulo, poderemos ver que o assunto é bem evidente para o leitor, logo, nos primeiros capítulos, o que o isenta de qualquer surpresa posterior por se tratar de uma história de deficientes físicos.
Acreditamos que o livro compreenda uma gama de leitores de idades entre dez e treze anos, esses jovens têm condições de formar opinião sobre diversos assuntos, inclusive sobre esse. O fato de a história ser de um menino que não tem um braço, não quer dizer que ela diga respeito somente a deficientes. Enquanto lemos o livro, somos envolvidos, principalmente, porque entramos no universo de um menino no início da adolescência, que tem as mesmas angústias e o mesmo comportamento de um menino comum, e isso se sobrepõe à sua deficiência.
O autor peca ao mostrar a união de um grupo de portadores de deficiências diferentes. Para Silveira (2003), isso é inverossímil, pois, de acordo com o ponto de vista da comunidade surda, o mais plausível seria que meninos e meninas surdas se unissem por terem interesses semelhantes, como a Língua de Sinais, que não tem ligação com outras deficiências.
Em relação ao comportamento de Zóli e de Bibiana, Cunha demonstrou ter acertado a medida. Zóli enfrenta os dilemas relativos à adolescência de um menino comum, entretanto, as suas falas, compostas por detalhes minuciosos, não escondem a sua condição e atribuem mais realismo ao personagem, como nesta passagem: “Eu fui pro vestiário, coloquei a meia e o tênis, não posso usar tênis de amarrar – sorte que agora tem esses com velcro -, [...]” (CUNHA, 2002, p. 101).
Bibiana é carismática e expansiva; admirada por todos, é uma espécie de líder da turma de “ímpares”. Ela é, também, responsável pela inserção de Zóli na turma, já que é ela quem faz todo o intermédio entre eles, favorecendo a aproximação. Bibiana é aceita e reconhecida pelo grupo ao qual pertence, e por ter nascido com a deficiência, ela já finalizou todo processo de reconhecimento pessoal pelo qual Zóli ainda deverá passar. Por isso, ela é um personagem encarregado de “guiar” Zóli, mostrando para ele que, apesar de sua deficiência, pode ter uma vida normal.
É na construção dos pais que a história se torna mais verossímil. Ao contar sua história, Zóli vai dando pistas de que seus pais estão com problemas e agindo de forma diferente depois do acidente. Principalmente, a mãe, que ele relata como se estivesse se sentindo culpada:

Os meus pais mudaram um monte. A minha mãe não teve culpa nenhuma do acidente, o outro cara tinha bebido, o idiota. [...] Eu tinha escutado eles dois brigando na noite passada, não sei o que era, mas eles nunca faziam isso antes. Era sempre amorzinho pra cá, benzinho pra lá, beijinho pra cá, eu até me sentia envergonhado, [...] (CUNHA, 2002, p. 27).

De acordo com Gomes (2006), as famílias passam por um “processo de luto” ao receberem um filho deficiente. De maneira mais simples, podemos dizer que é como perder um filho perfeito e ganhar um deficiente, e, assim, ser necessário aceitar e adaptar-se a essa nova realidade. Em “Ímpar”, podemos observar o comportamento dos pais e verificar a semelhança com os estágios relacionados a esse processo.
As etapas do luto são quatro: choque, negação, sofrimento e recuperação. Não chegamos a acompanhar a fase do choque, pois a história mais detalhada inicia no momento em que Zóli e sua família mudam-se para outra cidade. Já a etapa da negação, em que a pessoa se pergunta “Por que isso aconteceu e não pude evitar?” e a fase do sofrimento e desorganização, em que a pessoa se sente culpada e que se afasta da sua rotina, são bem presentes no livro.
Eles abandonam a outra cidade, como quem foge da realidade. Após isso, além de largar os estudos e ter problemas, que não tinha antes, com o marido, a mãe de Zóli trata o filho com desvelo excessivo, demonstrando que se sente culpada e tem medo do seu julgamento. O menino percebe e comenta isso em uma passagem do texto: “Depois do acidente ela ficou assim. Antes ela nunca parava de me perguntar alguma coisa que ela achava que eu tinha para dizer, nunca.” (CUNHA, 2002, p. 19).
O comportamento dos pais de Tula também se enquadra nas “fases de luto”. O pai deixou a família e a mãe tentou fugir da situação, deixando de dar a atenção necessária à filha. Em contrapartida, a mãe de Bibiana, assim como a filha, demonstra-se bem segura, provavelmente, porque lida com o problema há bastante tempo, então, já se recuperou do trauma e passou pelo processo de maturação necessário para lidar com a situação da maneira que os outros pais não estão preparados ainda.
Os pais de Zóli chegam à fase de recuperação e aceitação quando procuram o filho a fim de ajudá-lo em sua luta para fazer parte da equipe de tênis. Depois que o garoto obtém sucesso com o tênis, a história começa a entrar em harmonia e a família começa a se estabilizar novamente. Enfim, mãe e filho, mais confiantes e seguros, conversam, firmando a recuperação deles.
Voltando à questão da adaptação, Regina Zilberman (2003), embasando-se nos ângulos de adaptação de Göte Klinberg, afirma que, em nível de assunto, esta deve ser feita com a intenção de adequar a obra ao conhecimento de mundo do leitor, e, por conseguinte, os assuntos pelos quais o recebedor não compreende devem ser banidos. Todavia, em alguns casos, é necessário que sejam acrescentados alguns conteúdos desconhecidos, diversificados, com o intuito de promover uma melhoria no comportamento social e intelectual do leitor.
Dessa forma, após interpretarmos alguns pontos de “Ímpar”, podemos concluir que seu assunto é adequado ao público ao qual se propõe a atingir, visto que se trata de uma narrativa sobre deficientes físicos e o recebedor tem conhecimento, mesmo que superficial, sobre o assunto e capacidade para refletir sobre ele.
Sempre que tratarmos de temas polêmicos, que geram preconceito, nos questionaremos sobre a existência, ou não, de “ensinamentos” que poderão ser introjetados no leitor. É difícil tratar de deficiência sem passar alguma lição de moral, mesmo que esta esteja nas entrelinhas. No caso de “Ímpar”, concluímos que algo, com certeza, fica, mas sem ultrapassar as barreiras da fruição. Indubitavelmente, a timidez e os conflitos de Zóli, somados à descontração e alegria de Bibiana chamam mais a atenção do leitor do que o problema que eles têm. Dado que o assunto não é abordado, frequentemente, pelos livros, podemos acreditar que o conteúdo acrescentará ao intelecto do leitor como informação adicional, mas sem condicioná-lo a ler o que não procura.
Em “Ímpar” há uma boa adaptação em nível de forma. A narrativa acontece linearmente, o que facilita a leitura. No início, ficamos um pouco confusos com os tempos verbais usados e com a organização de algumas passagens do texto. Logo depois de lermos algumas páginas, verificamos que isso não passa de uma caracterização do personagem.
Zilberman (2003) diz que o leitor tem que se identificar com os personagens. Como tratamos anteriormente, a história é bem verdadeira ao olhar do jovem comum, normal. O interessante é que à perspectiva do portador de deficiência, os personagens também atendem a essa exigência. Zóli apresenta questões bem pertinentes ao universo dos deficientes. Como neste trecho, em que demonstra se incomodar com as pessoas que ficam questionando-o sobre a origem da sua deficiência: “Um cara até veio me dar oi, perguntar de onde eu tinha vindo, mas eu não dei muita conversa. Logo eles começam a perguntar o que aconteceu comigo, como foi, se doeu, essa coisa toda e eu odeio isso, [...]” (CUNHA, 2002, p. 21).
Porém, há outras não tão pertinentes, como no último capítulo em que Zóli resolve colocar um braço, e conta com muita empolgação como é a ponta de gancho. Na fase inicial da adolescência, os jovens são muito inseguros e têm vergonha de tudo. Se considerarmos isso, veremos que seria quase impossível convencer um menino a usar um braço com um gancho no lugar da mão e, muito menos, fazê-lo achar que isso é muito legal.
Entrando na questão do estilo, observamos que à voz do narrador está um menino de prováveis doze anos, o que explica a repetição e a informalidade das palavras. Isso nos autoriza dizer que a linguagem está de acordo com o leitor do livro, que não terá dificuldade em compreender o texto. O ponto fraco dessa linguagem é a falta de palavras diferentes que enriqueceriam o vocabulário de quem o lê.
Sobre o aspecto físico do livro, a primeira impressão que temos é sempre através da capa. No entanto, o leitor mais distraído, que não se apega aos pequenos detalhes, não perceberá, em um primeiro instante, que o menino pega o gibi apenas com uma das mãos, e que o Super-Homem estampado na capa do gibi tem apenas uma perna. Não podemos deixar de esclarecer que essa ilustração pode ser proposital, pois ao olhar da criança, que é mais minucioso aos detalhes, é provável que nada disso passe despercebido.
Contendo pouco mais de cem páginas, capítulos curtos e texto interrompido por pequenas imagens e páginas em branco, pode ser lido com facilidade por pré-adolescentes. As figuras que ilustram o interior do livro são poucas e se repetem a cada início de capítulo, dessa forma, se revelam de forma positiva, pois não causam interferências na interpretação do leitor.
Após fazermos uma análise sobre os aspectos que podem ser trabalhados no livro infanto-juvenil, com o intuito de aproximá-lo às características e perspectivas do leitor, devemos refletir sobre o seu uso. “Ímpar” pode ser lido tanto por uma criança que o encontra na prateleira da biblioteca, e se interessa pelo livro, seja pelo motivo que for; quanto por outra que vai para a escola e é obrigada a lê-lo porque a professora, com uma visão pedagógica, acredita que irá conscientizar o aluno de que não deve ter preconceito. A criança que ler por obrigação vai perceber que está sendo ensinada, e passará a acreditar que os livros só servem para isso, afastando-se deles. Concluímos, então, que por mais adaptação que se faça, e por mais perto que se chegue da realidade da criança, de nada adiantará, se a leitura for feita de forma incorreta, pois seus resultados serão influenciados de forma definitiva pela sua aplicação.


CUNHA, Marcelo Carneiro da. Ímpar. Porto Alegre: Projeto, 2002.

GOMES, Ana Maria Paula Marques. A importância da resiliência na (re)construção das famílias com filhos portadores de deficiência: O papel dos profissionais da educação/reabilitação. Repositório Institucional da ESEPF, 2006.
Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2008.

SILVEIRA, Rosa Maria Hessel. Nas tramas da literatura infantil: olhares sobre personagens diferentes, UFSC, 2003. Disponível em: Acesso em: 31 out. 2008.

ZILBERMAN, Regina. A literatura Infantil na Escola. São Paulo: Global, 11ª ed., 2003.

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